Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte

Os sonhos

Na adolescência, descobri que tinha a habilidade de planejar meus sonhos. Ou, pelo menos, de controlar um estágio de vigília meio adormecido. Num deles eu voava, passando por cima de casas e cidades. Só precisava me concentrar para não perder altura, embora não houvesse realmente o perigo de cair. A sensação era agradável. Sonhos Peter Pan.
Os sonhos induzidos, se é que eram sonhos, às vezes escapavam do controle e acabavam virando pesadelos. Meus pesadelos são recorrentes e me seguem até hoje, nas noites de insônia.
Quando garoto, tinha alguns pavores: medo de bêbados e de loucos, medo de morrer afogado e de ficar perdido. Quais seriam as Madeleines desses pavores?
Todo domingo, no Cinema Rosário, antes dos filmes, passavam alguns seriados. Dentre eles, eu tenho certeza de dois: Flash Gordon e Fu Manchu. Um episódio de Fu Manchu me perseguiu por muito tempo. Na cena, a mocinha estava presa num cilindro de vidro, fechado por uma tampa de aço. No recipiente havia um buraco por onde entrava a água, que subia rapidamente. Durante algum tempo, ela conseguiu respirar o ar que ainda havia na parte de cima, até ser encoberta totalmente pela água.  O episódio terminava com ela se debatendo até perder os sentidos. Não sei como a mocinha se salvou.
Hoje, quando estou naquele estado intermediário, do qual ainda consigo sair por vontade própria, é comum sonhar que estou numa caverna e tenho que mergulhar em um túnel cheio de água.  Eu nunca acho a saída. A variante seca é quando fico entalado em uma passagem na rocha.
Será um eco da asma de minha mãe, que herdei e repassei para o meu filho? Terá alguma conotação sexual, como penso às vezes? Um pênis preso num buraco? O medo não tem uma base real, porque eu tinha a mania de fazer túneis quando garoto. Nos barrancos da Rua Cônego Floriano, no Bairro da Graça, onde a terra era avermelhada, com veios amarelados. Ou na terra escura e fértil do quintal da Rua do Ouro. E adoro mergulhar.
Não gosto de altura, embora não chegue a ser uma fobia e eu consiga caminhar sem medo num lugar alto. Essa aversão produz os sonhos-gastura. Aquela sensação de passar o dedo no veludo, ou de ouvir o giz rangendo no quadro. Nesses sonhos, vejo meu filho ainda pequeno cair de uma janela. Quando chego na beirada de alguma coisa alta, na vida real, às vezes me vejo caindo. É um flash que passa rápido e não retorna.
Os pesadelos propriamente ditos, no estado de sonho profundo, eram outros. Sonhava que estava sendo perseguido e que passava por vários cômodos sucessivos, que nunca terminavam; de uma sala para um quarto, depois para uma cozinha e assim sucessivamente. Ou que estava perambulando por uma cidade perfeitamente desconhecida, andando por ruas intermináveis, percorrendo bairros diferentes, querendo chegar a um lugar que não eu conseguia situar.
Os filmes e os livros da coleção Terramarear deram origem aos sonhos de espadachim, nitidamente inspirados em Scaramouche e Stewart Granger. Na vida real, eu tinha medo de facas e canivetes. Lembro como fiquei quando li o significado da expressão: “briga de homem é com camisa amarrada”. Dois cangaceiros amarravam as beiradas das camisas desabotoadas e iam se furando, com suas peixeiras. Alguma coisa entre a gastura e o pânico.

Em alguns pesadelos, duas pessoas brigavam com canivetes, se cortando. Em um outro, vi uma pessoa, talvez meu tio, retalhando o peito de Angélica, nossa empregada, que de vez em quando tinha acessos de loucura. Usava uma faca de cozinha, que ia produzindo talhos vermelhos na pele negra. Angélica não reagia! Impressionante como a busca pelos sonhos da juventude traz de volta tantos pesadelos.
Minha mãe contava a história de um menino que havia estava apontando um lápis com uma gilete. De repente sentiu uma coceira nos olhos e, distraído foi esfregá-los, cortando-se com a lâmina. Meu Buñuel - gastura, definitivamente.
Quando eu morria nos sonhos era sempre com um tiro, como um herói que finalmente é derrotado pela traição, ou pelo número dos adversários. A espada, com certeza, é um símbolo fálico. Freud sabia das coisas.
Da leitura do livro “Tarzan e os homens-formigas”, me ficara a imagem de uma tribo de mulheres. Nos meus sonhos induzidos, eu fantasiava mulheres nuas, que podiam ser atravessadas de lado a lado por uma espada e que nunca sentiam dor ou ficavam feridas. De alguma maneira, elas estavam associadas a um nome: Alali. Minha fantasia era atravessá-las de todas as maneiras, com predileção pelos seios. Outro dia achei o livro em um sebo. Dei uma rápida folheada e o nome Alali trouxe de voltas as minhas mulheres.
Sonhos de pré-adolescente. Os hormônios ainda não haviam entrado em ebulição. Não preciso dizer porque nunca tive vontade de fazer análise: eu mesmo sou meu terapeuta.