Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Conto de Natal

Conto de Natal

O Sr. Erany informa que tem 67 anos, é aposentado e sustenta um filho epiléptico e uma mulher “com paralizia”. Nada disso é relevante para o processo em tela, mas ele, com aquela  educação das pessoas humildes, acha que é necessário se apresentar e explicar minuciosamente sua história.
Tudo isto foi escrito em uma folha de papel almaço, com letra irregular e surpreendentemente legível, apesar dos tremidos. Aduziu que não encontra emprego, por causa da idade. Ganha os R$ 260,00 da aposentadoria, o que mal deve dar para os remédios. Mas isso ele não revela, com aquele resto de pudor que ainda mantém.
Inicia nomeando o cargo da autoridade competente, precedido pelo indefectível Sr. Dr Fulano de Tal. O assunto é a sua inscrição em dívida ativa. A origem do débito é explicada com singeleza: para aumentar os seus proventos, montou uma barraquinha de ambulante, tudo legalizado, segundo ele. Mas assim não entendeu o fiscal municipal de postura, que lavrou o competente auto de infração. Ainda segundo ele, a multa o deixou  “decepissionado”.
Não há dúvida de que o estilo é o homem. Logo à frente, pondera que a razão do não pagamento é “porque, talvez, ele não tinha dinheiro”. A frase é toda uma vida. Usa-se um eufemismo para não ofender tão alta autoridade com problemas tão prosaicos. Reconhece a obrigação de pagar e não cogita em argumentar que ela é injusta - todo o seu argumento é “ad misericordiam”.
O Sr. Erany é um daqueles homens bons, que acredita no poder de uma boa conversa, com jeitinho, sem forçar a barra. Até se excede um pouco, afirmando que, “com certeza”, o Doutor veio das classes humildes. Talvez isso fosse verdade no seu tempo, em que o filho da lavadeira começava como contínuo e ia galgando, degrau por degrau, a hierarquia do serviço público.
Os tempos agora são outros. A Carta Magna de 1988 acabou com os privilégios e decretou a igualdade de todos perante a lei. A nomeação para os cargos de carreira se faz através da aprovação em concurso público. Quero ver o filho da lavadeira, que estudou em escola pública, que escreve  “paralizia” e “dessepicionado” chegar até aqui, aonde eu cheguei.
Mas o coitado persiste nesta crença e acha mesmo que a autoridade poderia ser sensível ao seu apelo. Admitindo que o fosse, estaria cometendo crime de prevaricação se  agisse contra a legislação em vigor, apesar do motivo humanitário. Tenho certeza que ele desconhece o que seja prevaricação.
Porque há o motivo. O Sr. Erany não mente. Sua exposição é uma peça inteira, consistente, uma aula de sociologia em uma única mísera lauda de papel almaço, meio amarelado. Acabo por admitir que no seu pedido há muito mais conteúdo do que no meu arrazoado.  Esse meu estilo cartorial e pedante, cheio de polissílabos e de jargão jurídico, temperado com um latim macarrônico, acaba abafando as minhas convicções.
Em anexo, xerox da carteira de identidade e mais uma papelada: exames, atestados, etc. Já se acostumou a ter que provar que é ele mesmo, e que o que disse é verdade. Não perdi tempo olhando a sua foto.
Sou simpático a sua causa, mas não a sua figura. Ele me irrita com seus eufemismos, sua humildade, sua resignação. Indigno-me, por ele que não se indigna. Mas uma repartição pública é o lugar mais inadequado do mundo para indignações. Se o papel aceita o que se lançar nele, o papel dos processos é de um tipo especial, anti-séptico, apesar de ser freqüentado por ácaros, fungos e bactérias de todas as cepas. O chefe pode passar por alto um estilo não parlamentar, digamos assim, mas quer saber qual a motivação do despacho, o seu enquadramento legal. E é ele quem decide. Eu apenas emito um parecer, penso que acho alguma coisa, salvo melhor juízo.
É claro que indeferi de pleno o pedido, por carecer de embasamento legal. Não, não fiz nenhuma subscrição entre os colegas. O Sr. Erany que se vire para pagar a multa. Porque ele vai pagá-la, pobre não sabe sonegar e perde o sono se ficar devendo. Que seja às custas do remédio da mulher, ou do filho, pouco se me dá. A caridade não é uma das minhas virtudes. Sinto muito, não sou cristão.
Não, também não convoquei o Sr. Erany à repartição. Ele provavelmente não me escutaria. Que adiantaria eu lhe dar uma aula sobre a injustiça das taxações em geral, e desta em particular? Ele acabaria por me irritar  ainda mais, pedindo para falar pessoalmente com o chefe, insistindo, querendo apenas um pouquinho de esperança.
Não há um final feliz possível para esta história. Mesmo que a multa fosse perdoada, ele continuaria, pobre, desempregado e doente. Porque sofre de câncer no fígado, conforme os laudos que anexou. Sua vida deve ter sido toda vivida nesta mesma toada, é tarde para mudá-la. É véspera de Natal e eu só queria achar um lugar neste mundo onde o ser humano fosse um pouquinho menos hipócrita e eu pudesse destilar a minha raiva sem maiores constrangimentos.


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Em busca do vento perdido


 Em 18 de agosto de 1871, nos Jardins das Tulherias, Pénaud fez voar na presença de representantes da Société aéronautique de France, um modelo de aeroplano motorizado, o Planophore, acionado por um motor à elástico (pelo desenrolar de de uma tira de elástico previamente enrolada). Ele voou por 60 metros a vinte metros de altura durante 13 segundos.

Atendendo ao apelo de Dona Dilma, por uma tecnologia de estocagem de vento, eu apresento a Anemoteca, um armazenador de vento. Penaud produziu vento com uma tira de borracha enrolada. Eu pretendo seguir o caminho inverso, estocar vento, usando uma tira de borracha. A idéia é simples: basta acoplar ao eixo da hélice de um moinho de vento uma tira de borracha, O vento irá enrolar a tira, durante a noite, quando, segundo a insistenta, pode ventar mais. Isso feito, um mecanismo irá travar a hélice, quando a borracha estiver totalmente torcida. Durante o dia, bastará destravar a hélice e utilizar o vento estocado. Se o aeroplano voou, não há porque a minha Anemoteca não funcionar. Estou esperando o financiamento para aperfeiçoar a minha invenção. Que já foi patenteada. Primeirão.
Vamos prosseguir na nossa demonstração. Supondo que a minha Anemoteca funcionasse, durante o dia, o moinho de vento poderia usar o vento estocado durante a noite para produzir energia elétrica e nossa presidente estaria coberta de razão. 
UEPA. Faltou um pequeno detalhe, não dá para estocar e gastar ao mesmo tempo. A Anemoteca ocupou o moinho a noite toda, estocando vento. Então, se o dispositivo for usado para produzir vento, durante o dia, só estaremos trocando o dia pela noite. Em vez de termos x de vento para ser usado durante a noite, teremos esse x para ser usado durante o dia. 
Que dureza! Na cabeça de nossa presidente, como é possível arrecadar e pedalar ao mesmo tempo, o estocador de vento seria uma pedalada eólica. Que não funciona, como as pedaladas fiscais não funcionaram.
Há um outro probleminha, a maldita Segunda Lei da Termodinâmica. E não há decreto que passe por cima dessa lei e autorize a estocagem de vento de maneira econômica.
Explicando de uma forma que até o Lula entenderia (a Dilma não vai entender), todo processo de transformação de energia não consegue fornecer mais energia útil na saída do que a que foi usada na entrada. Todo máquina tem um rendimento menor do que 100%. O motor de um carro tem um rendimento de 30%. Isso quer dizer que só 30% da energia química (a explosão da gasolina) resulta em energia cinètica (o movimento do carro). Logo, a melhor coisa a fazer com o vento não é estocá-lo para depois usá-lo. É usá-lo diretamente para produzir energia elétrica. No processo de estocagem haverá uma perda. No processo de liberar o vento estocado, haverá outra perda. Economicamente, a estocagem de vento é inviável. Tudo bem que a Dilma é perita em apoiar processos economicamente inviáveis, mas nesse tempo de véspera de apagão, eu não recomendaria.
Mas por que se pode estocar água e não compensa para o Brasil estocar vento? Bom, a água evapora usando a energia solar (grátis). Depois cai no reservatório graças à lei da Gravidade (grátis e irrevogável). Uma vez construída a barragem, ela vai passar a vida toda armazenando água e gastando a água armazenada, sem custo adicional. 
Mas e o vento? Mesmo que o processo não seja econômico, ele não seria viável, numa região de vento escasso? Digamos que se estoque só metade do vento produzido a noite para ser usada durante o dia. Aí teríamos vento diuturna e noturnamente, como diria a insistenta. Beleza. Só tem outro pequeno problema. Como a própria presidente deveria saber, nosso sistema é todo interligado. Então, o mais econômico é usar o vento, enquanto ventar e usar a energia de outras fontes, quando não ventar. Sem graça, né? E eu que pensei que iria faturar uma grana com a Anemoteca.
E o papo de usar rocha porosa para armazenar ar comprimido? Se você tiver o tipo certo de rocha porosa, na região certa, onde já há moinhos de vento produzindo energia elétrica de forma econômica, então, talvez esse processo seja viável para garantir uma geração constante de energia elétrica, onde o uso de outras fontes não compense. O fato é que esse processo só é usado em dois locais, no mundo todo e ainda está em fase experimental.

Fora isso, estocar vento é que nem cultuar a mandioca e comungar com o milho. São delirios de uma memória corrompida. O que se estoca nunca é o vento. É algum tipo de material (ar comprimido, por exemplo) que pode ser usado para produzir energia eólica, que será transformada em energia elétrica. Ou então, no caso da Anemoteca, a energia eólica é transformada em energia potencial elástica que poderá ser transformada novamente em energia eólica. Com uma perda considerável na estocagem e na liberação.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Acalanto para o menino afogado



Eu não conheço o menino afogado
Nada sei sobre o menino afogado
Eu não matei o menino afogado

A culpa não é minha

Culpem o mau tempo
O pai, que não segurou direito o menino
O fanatismo... quem sabe, o imperialismo?
Qualquer coisa

Parem de postar a foto do menino afogado

Não é real
Parece um boneco que o mar jogou na praia
Com tanta foto boa
De criança queimada, esburacada de bala, deformada, esmigalhada

Aquelas fotos
De se olhar e dizer
A guerra é uma coisa horrível!
Até quando, oh, Senhor?
Ainda bem que, no Brasil...

Chega dessa porra de menino afogado

Ele não é meu filho
È só um menino
Parece tranquilo
Podia estar dormindo
Que bom que não vai acordar

Eu acordo
Vejo sua foto pela milésima vez
E não sei o que dizer

Marco Lisboa
8/9/15










quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A invasão

A invasão - Capítulo 5



Mao Tsé-tsé - O Presidente Mao nos ensina – “Quando dizemos que o imperialismo é um tigre de papel, estamos a falar em termos estratégicos. Considerando-o como um todo, devemos desprezá-lo. Mas se considerarmos cada uma das suas partes separadamente, devemos levá-lo a sério. Tem garras e mandíbulas afiadas.” Camarada Chou, em sua opinião, qual é a razão do fracasso dos sucessores de Bin Laden?
Chou Le Zhin: Eles não aplicam a linha de massas?
M. Não, eles fracassam porque usam as mesmas armas que o inimigo. Se meu tio-avô estivesse vivo, ele diria que as três grandes pragas modernas são o computador, o celular e o GPS. Lutar contra o imperialismo recrutando nas redes sociais, falando em celulares e revelando sua localização pelo GPS é como caçar um tigre à noite, sem batedores.
C. Como então construiremos nossa rede?
M. Temos que dar dois passos atrás, se quisermos ficar um passo à frente do inimigo. Recrutarmos à moda antiga, em encontros pessoais. Nossos agentes se manterão em movimento, de preferência no exterior, onde um bando de turistas chineses não chamará a atenção.
C. E como nos comunicaremos? Graças à influência ideológica dos costumes burgueses, um turista chinês sem Iphone é como um panda no meio do deserto. O presidente Mao nos ensina que para acabar com os fuzis, deveremos empunhar o fuzil. Não poderíamos usá-los para mandar mensagens em código, através de frases de aparência inocente?
M. Nós devemos nos misturar às massas, como um peixe dentro da água. Nossos agentes usarão tabletes, Iphones e todo esse lixo burguês. Entraremos nas redes sociais, tiraremos selfies, mandaremos mensagens para os amigos. Se algum de nós for identificado pelo inimigo, eles terão milhares de textos e imagens para serem analisados.  E não encontrarão nada, pois não haverá nada para ser encontrado.
C. E como enviaremos as verdadeiras mensagens?
M. O Presidente Mao nos ensina que as ideias corretas não caem do céu. “Elas só podem vir da prática social, dos três tipos de prática: a luta pela produção, a luta de classes e os experimentos científicos na sociedade. Estou pesquisando os métodos de criptografia já utilizados. Os antigos escreviam mensagens no couro cabeludo ou em papiros que precisavam serem desenrolados de uma certa forma. Eu descartei as mensagens cujo suporte é um meio físico, porque elas podem ser capturadas.
Os alemães usavam o rádio. Uma máquina, o Enigma, produzia uma sequência de letras que deveria ser lida por outra máquina. A chave era mudada a cada 24 horas. Era engenhoso, mas Turing provou que toda mensagem cifrada, em tese, pode ser decifrada.
C. Então, o que nos resta?
A conversa transcorria em um banco, no meio de um pomar de árvores frutíferas e acompanhada pelo chilrear dos pardais.
 Em 1958, o presidente Mao lançou uma campanha de higiene contra as quatro pragas: mosquitos, moscas, ratos e pardais. Os três primeiros eram escolhas óbvias. No horóscopo chinês, o tigre simboliza o número três e os tigres estavam em desgraça. Os pardais foram incluídos, para se obter um número mais propício, o quatro, que representa a Terra e remete às coisas concretas.
Os pardais (principalmente o pardal-montês da Eurásia) comem sementes de grãos, roubando os frutos do trabalho dos camponeses. As massas da China foram mobilizadas e tiveram que bater panelas. Impedidos de pousar, as aves caiam exaustas dos céus. Seus ninhos eram derrubados, os ovos quebrados e os filhotes mortos. Escolas, unidades de trabalho e órgãos do governo, eram citados e celebrados, de acordo com o volume de pragas aniquilados.
Como resultado, as aves quase foram extintas
Em abril de 1960, percebeu-se que os pardais, além dos grãos, comiam uma grande quantidade de insetos. A produção de arroz havia caído significativamente. Os percevejos tomaram então o lugar dos pardais, como a quarta praga, mas já era tarde: houve uma grande proliferação de gafanhotos. O Grande Salto para a frente havia trazido desmatamento, uso abusivo de venenos e pesticidas e desequilíbrio ecológico. Tudo isso agravou a Grande Fome Chinesa, na qual mais de 30 milhões de pessoas morreram de fome. No meio de tantos chineses, elas passaram despercebidas.
Na Nova China Revisionista, os pardais voavam livremente.
M. Veja esse bando de pardais. Sua revoada é uma das coisas mais voláteis e transitórias que existe. Entretanto, em um dado momento, cada pássaro está em uma posição determinada. Se essa posição pudesse ser associada a uma coordenada, com a chave certa, escreveríamos a mensagem mais secreta do mundo.
C. Nesse caso, vamos fotografar uma revoada, codificar as posições e mandar a chave separadamente.
M. Teríamos vários problemas. Ninguém anda tirando fotos de revoadas o tempo todo e a chave teria que relacionar coordenadas num plano a letras. Seria o mesmo que mandar diretamente uma mensagem cifrada.
Pense em homens, no lugar de pássaros. Pense nos painéis humanos que os norte-coreanos executam nos estádios.
C. Poderia ser algo assim. Mas não temos tantos agentes e a mensagem, mesmo se durasse poucos segundos, poderia ser interceptada. Nós não podemos deixar rastros e nem chamar a atenção.
M. Os pássaros não carregam um cartaz. Uma mensagem hipotética só dependeria de suas posições. Poucos agentes, formando um painel humano, onde cada posição é um símbolo, seria o mais perto que poderíamos chegar de uma mensagem perfeita.
C.E Como decodificaríamos essa formação? Os aliados capturaram uma máquina Enigma e, a partir dela, conseguiram decifrar o método e chegar a uma chave geral.
M. Temos que estar dois passos atrás dos imperialistas. Lembra dos cartões perfurados? Através deles, os primeiros computadores recebiam seus programas e seus dados. Nós ainda temos alguns desses fósseis guardados em nossas universidades. Ele receberam um número de patrimônio e não podem ser destruídos. Vamos usar o atraso e a burocracia a nosso favor.
C Então o que temos a fazer é usar os nossos agentes para numa determinada hora ocuparem uma certa posição. Cada um receberá uma coordenada de GPS. O destinatário só terá que jogar essa mensagem em um cartão perfurado.
M. Restam ainda dois problemas, embora sejam relativamente fáceis. Nós podemos usar os nossos computadores antigos, para escrever uma mensagem e perfurar um cartão. Os furos serão a posição que cada um deverá ocupar. Como é que nosso agente decifrará essa mensagem? Os antigos computadores ocupavam várias salas. E, finalmente, onde deveremos colocar nossos agentes, de forma a não chamar a atenção?
C. Sabe aqueles antigos jogos para os primeiros computadores? Existem emuladores que são capazes de rodá-los nos computadores atuais. Só precisamos ter um programa que simule a leitura de um cartão perfurado. Não deve ser difícil.
M. E onde colocarmos nossos agentes?
C. O melhor lugar é a vista de todos. No ponto turístico mais visitado de cada cidade. Na Praça Vermelha, no campo de Marte, em lugares assim. Nosso agente irá tirar uma foto perfeitamente inocente, a foto será transformada para gerar um cartão perfurado e o cartão perfurado será lido.
M. Sim, mas ficarão rastros. Os programas e a foto. Essa mensagem terá que perder rapidamente a sua utilidade. Os alemães usavam o Enigma para dar as posições dos alvos a serem destruídos. Depois do bombardeio, a mensagem não tinha mais valor.
C. Então será assim que mandaremos a mensagem do juízo final. Um agente, com um tablete, tirará uma foto, decifrará a mensagem e acionará a carga explosiva com uma chamada. Ninguém poderia imaginar algo assim. É essencial que a autoria seja desconhecida.
M. Um americano disse que tudo o que um louco pode imaginar, um outro louco poderá descobrir. Desde que esse louco esteja no lugar certo, na hora certa, o que é quase impossível, nesse caso. Só precisamos de uma mensagem alternativa, caso tivermos que abortar a missão. Essa poderá ser transmitida como uma mensagem normal, via Iphone.
C. È só dizer que uma mulher abortou, mas passa bem. Os agentes que irão detonar as cargas saberão imediatamente do que se trata. E no meio de tantas mensagens irrelevantes, essa não despertará atenções.
M. Perfeito. Agora vamos tratar de alguns detalhes...

Os microfones direcionais eram de um modelo antigo. A barreira de árvores e a algaravia dos pardais iria exigir um trabalho árduo dos agentes da Guoanbu, a Agência de Segurança da República Popular da China.










quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A invasão

A invasão Capítulo 4


Quando procuramos algo, o mais importante pode ser o que não encontramos. O museu da História Contemporânea, no número 21 da Rua Tverskaya, antiga Gorki, era um imenso caracol.
Na entrada, uma isbá de antes da libertação dos servos. Com seu arado de madeira e o galão de vodka caseira. Havia isbás mais pobres, sem chaminés, chamadas de negras e as dos camponeses ricos, com chaminés – as isbás brancas.
Mais adiante, “O que fazer?”, uma primeira edição, e fotos de antigos revolucionários.
- Quem são esses? perguntou a colegial à sua colega.
- Políticos, respondeu a outra, com desprezo.
Segui pela casca externa, em direção ao miolo. Numa parede, o martelo pneumático de Stakhanov. No dia 31 de agosto de 1935, Stakhanov, operário de uma mina de carvão em Donets, conseguiu extrair 102 toneladas de carvão, superando 14 vezes sua cota diária. Esta façanha marcou a introdução de métodos tayloristas na mineração soviética. O diploma de herói do trabalho estava ao lado.
Um dos atrativos do turismo arqueológico é a memorabilia. Em lugar do diploma de herói do trabalho, que certamente teria um custo exorbitante, por dez dólares, na Praça Vermelha, comprei um quepe militar com várias medalhas soviéticas. De agora em diante, sou um udarnik, um trabalhador comunista de vanguarda.
Internando-me no caracol e progredindo na linha do tempo, alcancei a Grande Guerra Patriótica. A placa nazista apontava para Moscou, esperançosamente, indicando os poucos quilômetros que faltavam. O grupo de colegiais estava reunido em torno da professora.
_ Vaprossi iest? Perguntas?
- Damói.  ‘Bora pra casa, foi a resposta imediata, seguida da debandada.
A Praça Vermelha rendeu uma foto com Lênin, que trabalhava em parceria com Nicolau II, o sangrento. Nicolau foi dispensado, por motivos óbvios. No mausoléu, a fila era pequena. O Vladimir original tinha uma cor amarelo-limão e repousava num esquife de vidro, vestindo um terno preto, com as mãos ao lado do corpo.
A expressão era astuta, quase brincalhona. Meticuloso, apaixonado, carismático e ... morto. Lênin viveu, Lênin vive, Lênin viverá! é o slogan dos comunistas atuais. Saindo do mausoléu, a muralha, com as cinzas de Gagárin e John Reed. E uma fileira de túmulos, Frunze, Dzerjinsky, Kalinin, Jdanov,Voroshilov , Budioni, Suslov, Brejnev, Andropov, Chernenko e Stalin. Sobre a lápide deste, um funcionário colocava rosas vermelhas de plástico.
Com tão poucos resquícios do socialismo real, como seria a história oficial, daqui a uns 500 anos? Quem seria citado e quem seria nota de pé de página?
Ele mesmo era apenas um verbete no índice onomástico de alguns livros. Conforme a fonte, podia ser um guerrilheiro, um camponês que apoiara a guerrilha, alguém que havia morrido em uma pensão paulista, ou que ainda estava desaparecido.
Nós sempre contamos a nossa história, mesmo quando falamos de outros. A História é a história dos vencedores. Seria mais verdadeira a história dos perdedores?
E se não houvesse mais raça humana? Como um extraterrestre reconstruiria nossa história, a partir de alguns artefatos? Seria como ajustar os pontinhos negros do Campo de Marte às perfurações de um cartão.

sábado, 22 de agosto de 2015

A invasão

Capítulo 3


Diário de bordo do capitão

O terceiro planeta, nos confins da Galáxia, orbitando um sol amarelo, revelou a existência de vida. Basicamente, alguns insetos de carapaça marrom, alguma fauna marinha e uma vegetação rala e rasteira. Havia ruínas por toda parte.
Num primeiro levantamento, os achados mais relevantes estavam em uma superfície branca, onde figuras e pequenos sinais indicavam uma linguagem elaborada. Chamamos essas lâminas de folhas. Geralmente elas estão agrupadas e protegidas por uma capa, no que chamamos de ensinador. Pela radiação que ainda persistia no ambiente, deduzimos que essa civilização foi exterminada em uma guerra nuclear.
Nosso tempo era curto e resolvemos nos concentrar numa edificação quase intacta. Nela haviam morado dois vulcanóides. Simetria axial, quatro membros, sendo os inferiores usados para locomoção. O povo do terceiro planeta possuía noções muito avançadas de Ciência. Levamos alguns exemplares de seus ensinadores. Pelas ilustrações, deduzimos que eles dominavam vários teoremas de nossa Ciência Natural e de nossa Ciência das Relações. Mais um pouco e seriam capazes de se aventurarem pela Galáxia.
Eram adeptos de um jogo de tabuleiros, com 64 casas e 6 peças diferentes. O jogo deveria ser extremamente popular, porque achamos mais de quinhentos ensinadores dedicados à eles. Observando seus diagramas, conseguimos descobrir os símbolos que usavam para anotar suas jogadas.
Graças ao que deveria ser um manual, resgatamos todas as regras desse jogo e até mesmo reproduzimos partidas. Nossa tripulação agora não para de jogar. Alguns já conseguem acompanhar as partidas e entender as estratégias envolvidas. Em breve nossos cientistas criarão um programa capaz de igualar os jogadores vulcanóides mais hábeis.
Havia alguns dispositivos que sugeriam que eles faziam uso intensivo de informação codificada eletronicamente. O tempo e pulsos eletromagnéticos muito intensos tornaram impossível recuperar qualquer informação contidas nesses aparelhos e em pequenos objetos, que, ou se encaixavam em aberturas laterais, ou eram colocados dentro dos dispositivos.
Na habitação que estudamos, cada cômodo tinha uma função específica. O vedor, era montado em função de um aparelho que, com certeza, reproduzia imagens. O consultor abrigava os ensinadores. O repousador era onde dormiam e guardavam o vestuário. O limpador, onde se lavavam e excretavam. Havia ainda o comedor e vários outros aposentos que pareciam servir para múltiplos fins. Nós os chamamos de guardadores.
Esse povo adorava vários deuses. Um deles era um vulcanóide de outra espécie, ereto, com a frente branca, o dorso negro, um bico e apêndices que não serviam para voar. Ele ficava em cima de uma máquina de calor. Observando mais de perto essa máquina, descobrimos que ela também servia para resfriar sua parte interna. Provavelmente, o deus era o senhor do frio e zelava pela conservação dos alimentos ali guardados.
Os outros deuses eram muito mais graciosos. Corpo esguio, quatro membros locomotores, garras e uma cauda. Não pareciam ter uma função específica. Havia reproduções deles por toda a parte e pequenas estátuas, quase cinquenta, no que parecia ser uma altar doméstico. Deveriam ser animais sagrados, pois encontramos pequenos recipientes, que provavelmente eram usados para colocar oferendas e alimentos para eles.
Nosso suboficial de ciências levantou a hipótese de eles serem os deuses do sono, pois apareciam dormindo em muitas reproduções e seus esqueletos foram encontrados sobre o retângulo que os vulcanóides usavam para dormir.
Esses deveriam ser deuses antigos, domésticos ou de um só clã. Os cultos coletivos eram realizados em arenas, quase sempre circulares, com um retângulo onde se viam estranhas marcas desenhadas sobre uma vegetação verde. Havia dois grupos de sacerdotes e seus seguidores usavam suas cores. Nessa habitação havia várias bandeiras, roupas e símbolos com as cores preta e branca. Três letras apareciam sempre: CAM.
Nossa nave pode carregar pouco peso, somos feitos para exploração rápidas em ambientes que podem ser hostis. Levamos alguns exemplares de seus ensinadores. Eles ficavam agrupados em estruturas de metal, uma ao lado do outra, ordenados por assunto. Escolhemos alguns exemplares de cada estrutura dessas.
Nosso achado mais importante foram ensinadores que chamamos de significadores. Seu objetivo era o de registrar o nome de todas as coisas e explicar a sua função. Eles seguem uma ordem alfabética. Achamos significadores escritos no que pareciam várias línguas. Alguns, que chamamos de translatores, relacionavam duas línguas diferentes. Só nos ensinadores daquele jogo, que chamamos de batalha real, encontramos umas dez línguas diferentes e dois alfabetos distintos.
Certamente nossos sábios decifrarão a linguagem predominante nos ensinadores, com o auxílio dos explicadores. Começarão pelos símbolos concretos e chegarão até sua gramática, seus relacionadores e conectores. Mais tarde, se houver interesse e recursos, faremos uma expedição para explorar essa civilização perdida.

Relatório do oficial de Ciências.
A civilização do terceiro planeta atingiu um nível elevado de conhecimento científico. Através das partidas de batalha real, calculamos que possuíam uma inteligência de nível 5, em nossa escala. Eram cultos e dominavam vários idiomas. Por outro lado, adoravam deuses domésticos, específicos de cada clã e possuíam uma religião coletiva com rituais primitivos. Grau 8, em nossa escala de superstição.
Eram povos guerreiros, que sublimavam suas paixões através da Batalha Real.
Essa contradição, entre suas tendências primitivas e avançadas, se resolveu com a aniquilação total, através de uma guerra nuclear. Seria de grande interesse para os nossos estudiosos de dinâmicas sociais, entender o que desencadeou esse conflito. Recomendo que se retorne a esse planeta, para uma coleta maior de dados.




sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Relembrando o mensalão


Essa crônica foi escrita para se contrapor a uma declaração do então presidente Lula, que afirmou que não havia ninguém mais ético do que ele, nesse país! Sério, ele disse isso.


Ética espartana


- Venha aqui, você precisa escutar essa. Era a mulher, que me chamava para ouvir o nosso Presidente na tevê. Ela sabe que eu não suporto vê-lo. Nem ouvi-lo, para falar a verdade.
- Nunca, antes na história desse país, a coisa pública foi maltratada com tanta ética – dizia o nosso bouquirrouco presidente.
- Era só isso – disse eu impaciente. – Não, tem mais – disse ela. Com o nosso desdigitado presidente, sempre tem mais.
- No Brasil todos são inocentes mesmo com prova em contrário. Os únicos inocentes propriamente ditos são os meus eleitores, que, na intimidade com a galega, eu chamo de inocentes úteis.
Não, ele não disse isso. É que, depois de tanto tempo observando a política dessa terra, fiquei extremamente versado em politiquês. À medida que vou escutando, o meu cérebro já processa diretamente a tradução.
Gostaria de aduzir algumas obtemperações à fala do trono. Aliás, depois que a biblioteca presidencial pegou fogo, eu só uso esse português rebarbativo em minhas crônicas. Ele que se vire para me entender.  A biblioteca era uma das sete maravilhas do mundo moderno. Nunca, antes na história da humanidade, houve uma biblioteca menor. Mesmo assim pegou fogo. A de Alexandria pegou, com seus milhares de pergaminhos, por que os dois livros (um de colorir e uma história em quadrinhos) não pegariam?
Não existe ninguém mais ético que ninguém, meu presidente. A lei, como Vossa Excelência não sabe, é um sistema coercitivo que é imposto pela sociedade aos seus membros. A ética, ao contrário, é um sistema moral que é adotado espontaneamente. Existe sim, alguém que rouba mais que os outros. Esse é um critério objetivo: os valores são traduzíveis em moeda escorrente; as penas, que não serão cumpridas em celas especiais, podem ser comparadas.
Ia até me aprofundar nessas considerações, quando me veio uma revelação. O nosso presidente é muito mais ético do que eu. Ocorre que ele escolheu a ética espartana.
Explico. Em Esparta, para reforçar as virtudes militares, os jovens eram largados meio famintos no planalto, ou mesmo na esplanada. Tinham que sobreviver com o que conseguiam roubar. Tudo isso dentro da mais perfeita ética. Havia, porém, um detalhe: aquele que fosse pego roubando era considerado um canalha da pior espécie.
Conta a lenda, que um jovem espartano roubou uma raposa. O dono quase o surpreendeu e ele foi obrigado a escondê-la dentro da túnica. O animal começou a devorar os seus intestinos, mas  ele preferiu essa morte dolorosa à desonra.
Aqui no Brasil, os petistas famintos também foram abandonados nos cargos de primeiro e segundo escalão, para testar as suas virtudes militantes. Em algumas dessas repartições, só sobrou mesmo a raposa no galinheiro. O problema é que, quando um deles resolveu guardá-la na cueca,  o berro foi ouvido até na Praça Vermelha.
Os espartanos tinham outras virtudes. Foram eles, comandados pelo Rei Leônidas, que detiveram os persas, uma espécie de tucanos da época. Aliás, sempre que alguém denuncia os crimes petistas (porque eles são espartanamente éticos) é chamado pejorativamente de tucano. Embora, para todos os malfeitos práticos, os persas e os espartanos sejam muito parecidos, o nosso povo continua confiando no nosso presidente. Para eles, tudo isso é grego.

sábado, 15 de agosto de 2015

A invasão - segundo capítulo

A arte imita a vida, embora a vida nem sempre imite a arte. Essa assimetria o incomodava. No mundo material, por assim dizer, reina a simetria. Matéria e antimatéria, onda e partícula, bósons e férmions. No mundo das ideias, a falta de qualificação melhor, para modelos reais, pode haver uma cópia ideal, mas a recíproca, muitas vezes não ocorre.
Em Paris ele havia criado um epigrama: Paris é uma cidade chinesa, cheia de turistas, a maioria franceses. Era uma invasão disciplinada. Com guias ostentando bandeirinhas, ônibus fretados e um chinesinho de óculos, cara de nerd, que falava inglês.
Um grande autor brasileiro, grande pela quantidade de obras, criara os personagens perfeitos para a sua conspiração. Um baronete inglês, que vivia numa ilha paradisíaco, com suas seis noivas e que, volta e meia, era convocado para salvar a civilização das ameaças da Senhora do Mundo, Comandante Suprema do Exército do Suicídio Coletivo, Rainha Puríssima do Império do Nada.
Na vida real, a literatura de fricção de sua juventude, projetara uma sombra difusa num anteparo ideológico: o Grande Timoneiro.
Em novembro de 1957, em Moscou, falando para representantes dos comunistas de todo o mundo, ele pronunciou seu famoso discurso: “O imperialismo norte-americano é um tigre de papel”.
As palavras exatas de Mao foram: “Eu não tenho medo da uma guerra nuclear. Há 2,7 bilhões de pessoas no mundo, não importa se alguns morrerem. A China tem uma população de 600 milhões; mesmo que metade deles morra, ainda restará 300 milhões de pessoas. Eu não tenho medo de ninguém.”
Um drone, carregado por um norueguês corpulento, na fila da Norwegian, acionou uma outra chave. Mesmo antes dos drones e, com certeza, mesmo antes do novo mandato da velha presidente, ele já havia pensado na hipótese.
- Imagine um aeromodelo feito com C4, dirigido por controle remoto, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Bastaria apontá-lo e dirigi-lo em linha reta, passando pelo Congresso e dando uma guinada leve à esquerda, até o Palácio do Planalto.
- Teorias como essa não são boas para filas de embarque – advertiu o filho. Leve em conta que bomba, terrorista e ataque soam parecidas ao seu equivalente em inglês.
Calou-se. Nove anos de clandestinidade haviam servido para alguma coisa. Os pensamentos continuaram numa nova linhaE se?
Em Moscou, um novo epigrama: A China tem mais de um bilhão de habitantes, dos quais uns cem mil estão no exterior, fazendo turismo.
Mentira, é claro. A China é tão ou até mais desigual que o Brasil e sua elite não chegaria a um milhão. Aquele 1%, que como ele, ganharia o suficiente para excursionar pelo exterior. Uns cem mil chineses fazendo turismo. Essa seria a ordem de grandeza correta. Nem dez mil e nem um milhão. Um exército, de qualquer maneira.
E se?
Se parte da elite chinesa fosse mais cosmopolita, isso seria melhor do que uma geração moldada pela Grande Revolução Cultural Proletária.
Que não fora Grande (a não ser pelos números de pessoas envolvidas), nem mesmo uma revolução (apenas uma briga interna pelo poder) Muito menos cultural, já que fora dirigida, entre outras coisas, contra a cultura. E, com certeza, nem um pouco proletária (exército e estudantes formavam o grosso da tropa de choque que Mao havia lançado à luta).
Isso ele diria agora, enquanto ocasionalmente fazia turismo arqueológico, à procura de restos do socialismo.
40 anos atrás, ele acreditara que a terceira guerra mundial já havia começado. E que só a revolução poderia evitar a guerra.
E se?
Num mundo ideal, a Senhora do Mundo enviaria os seus agentes para explodir a Torre Eiffel, o Big Ben, o mausoléu de Lênin e a Estátua da Liberdade, para reinar nua, coberta apenas com sua máscara de jade, sobre os escombros de um mundo purificado.
Nessa jornada ela certamente contaria com a ajuda de um sobrinho-neto de Mao, que sonharia com a destruição dos malditos imperialistas americanos, dos revisionistas soviéticos e seus novos aliados, a renegada camarilha revisionista chinesa, que havia traído o marxismo-leninismo pensamento Mao Tsé-tung.
E que melhor lugar para esconder um agente chinês do que no meio de uma inofensiva comitiva de turistas chineses?
No mundo sublunar, definitivamente, reina a corrupção. Em lugar do Grande Timoneiro, temos uma casta de burocratas, que se renova periodicamente. O imperialismo não é mais um tigre de papel e a China é a maior detentora de papéis do tesouro nacional do antigo tigre, hoje parceiro.

A ser continuado.



segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A Invasão



Todos os chineses são iguais, embora alguns sejam desiguais, à sua maneira.
A sensação de já ter visto aquele chinês em particular veio em Estocolmo. Um clássico deja vu. Em São Petersburgo, numa lojinha de quinquilharias chinesas, onde entrei na esperança de achar um tabuleiro de xadrez que valesse à pena, veio a confirmação, diante de um baralho dedicado ao Grande Timoneiro: era o sobrinho-neto do Mao.
Não um sobrinho-neto legítimos, bem entendido, um sobrinho-neto presumível, que eu já havia visto em Paris, na Torre Eiffel, e que avistara de novo em Estocolmo, no Museu Vasa. Neto pela idade e sobrinho pela semelhança, que não era tão forte.
Fora em Paris que recomeçaram as teorias da conspiração. Uma foto, tirada do primeiro piso da Torre, onde havia chegado ofegante e feliz, por ter um coração que prometia uns 80 anos mais de bom funcionamento, fora a primeira chave. Ela mostrava o acesso pelo Campo de Marte, uma sucessão de três fitas retangulares, perfeitamente delimitadas, onde as pessoas, pequenos traços negros, eram dispostas em grupos que, claramente, não eram aleatórios.
Haveria ali um sistema de circulação, uma fórmula que relacionasse o número de pessoas por área com a quantidade de pequenos grupos, que formavam estruturas maiores, deixando largas áreas despovoadas? Algo como uma estrutura universal de galáxias, aglomerados galácticos e grandes aglomerados, preenchendo o vazio do espaço-tempo? Onde as leis de atração social seriam o análogo da gravitação e da matéria escura? Uma chave.
A foto foi tirada na esperança de que os pequenos traços-pessoas coincidissem com os furos num cartão perfurado achado em um livro comprado no sebo. Infelizmente, não poderia dizer mais qual fora o livro.
“Poincaré, presidente francês e matemático, ou vice e versa,  havia formulado o teorema do eterno retorno:
“Publicado em 1890, o teorema do eterno retorno afirma que um sistema mecânico finito com quantidade finita de energia deve eventualmente retornar arbitrariamente próximo a um estado inicial qualquer num número infinito de vezes. O teorema de Poincaré, segundo Brush, é uma tentativa de contestar a visão materialista e mecanicista de mundo, especialmente a teoria cinética dos gases. Partindo de leis mecânicas, o teorema conduz à conclusão da reversibilidade de processos mecânicos. Assim, inicialmente, o teorema do eterno retorno mostrou duas opções: ou abandono da segunda lei da termodinâmica, que aponta para a irreversibilidade de processos físicos, ou o abandono da descrição mecânica do mundo (o que Poincaré tinha em mente).”
Esse seria o enunciado forte do eterno retorno. Eu postulava um enunciado menos ambicioso: dado um sistema qualquer finito, seria possível achar um outro, com uma disposição tão próxima quanto se queira de alguns de seus parâmetros.
Uma foto de uma revoada de pássaros tirada no jardim Marjorelle, em Marrakesh, deveria coincidir, quase exatamente, com a de uma outra revoada, tirada em um outro local e em outra data, pela mesma pessoa.
No presente caso, uma foto tirada por mim, em Paris, se fosse devidamente retificada e ampliada na escala certa, mostraria que as pessoas estavam quase que exatamente nas mesmas posições que os furos de um cartão achado num livro (não se sabe qual, deve-se dar alguns graus de liberdade para a grande coincidência).
E mais, uma série de achados, reunidos durante mais de 20 anos, recolhidos de livros comprados aqui e ali, seriam capazes de serem juntados posteriormente numa grande estrutura, num romance que uniria e unificaria os grandes aglomerados humanos, numa estrutura passando por alguns pontos fixos arbitrários, de um espaço-tempo limitado.

A ser contnuada.



quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Nova Galândia

Nova Galândia

As casas de Nova Galândia, andar por andar, são a melhor ilustração de como funciona a mente prática de um neogalandês.
A cidade tem 90% de suas terras abaixo do nível do mar. Um povo menos prático logo teria se mudado para um burgo menos inóspito.
Não os neogalandeses.
Sob a orientação do primeiro burgomestre, ergueram diques, abriram canais e começaram a construir suas casas. Já naquela época, o espaço que caberia a cada família era muito pequeno.
Fossem eles menos práticos, teriam jogado os mais pobres nos pântanos que abundam na periferia da cidade e erguido no centro casas espaçosas e confortáveis.
Não os neogalandeses.
Que foram se espremendo em casinhas estreitas, coladas umas às outras. E produzindo sem cessar novos neogalandesinhos.
Ao tempo do segundo burgomestre, viu-se a necessidade de dotar as casas de um novo andar, para a nova geração. Um povo menos prático teria derrubado paredes e colocado escadas adequadas. Que seriam pouco inclinadas, espaçosas, e com largos degraus; antevendo que novas gerações viriam, que novos andares seriam necessários, por onde novas mobílias seriam transportadas, escadas acima.
Não os neogalandeses.
Hoje o mundo todo admira a audácia arquitetônica de suas escadas, apontando diretas para cima, com o espaço justo de um pé se firmar e com a largura necessária para um neogalandês magro subir com algum esforço.
Veio uma nova fornada de neogalandesinhos e um novo burgomestre. Aqui se faz necessário salientar duas características marcantes dos cidadãos dessa cidade: sua saúde admirável e seu respeito pela autoridade.
Graças a muita subida e descida de escadas, além das pedaladas em suas bicicletas, o povo se mantém em ótima forma. Sobre o respeito às decisões de seus burgomestres, iremos colhendo exemplos ao longo dessa narrativa.
Com a terceira geração, veio um novo desafio: como subir com a nova mobília até o novo andar, que acabara de ser construído?
Um povo menos prático teria feito rampas inclinadas de madeira, com trilhos e um sistema de contrapesos e de polias, por onde subiriam e desceriam até mesmo a mobília mais pesada.
Não os neogalandeses.
Mesmo hoje o mundo se curva diante de sua engenhosidade e de sua praticidade. Seguindo a sugestão do terceiro burgomestre, derrubaram paredes e, a partir do segundo andar, construíram novas, inclinadas para a rua, emulando a Torre de Pisa. No último andar, uma forte viga, com uma polia e uma corda reforçada, por onde subiam e desciam os móveis.
Todavia, não terminaram aqui as atribulações desse burgo notável. Uma nova geração já crescia no ventre das mamães neogalandesas. Um novo andar inclinado colocaria o centro de gravidade da casa fora de sua base e isso, como Galileu já sabia, não seria bom.
Outro povo menos prático teria esperado que a morte levasse a primeira geração, que morava no primeiro andar. Seria um incômodo provisório.
Não os neogalandeses.
Como já dissemos, a saúde invejável desse povo poderia transformar esse arranjo provisório numa longa espera. Seriam quatro gerações espremidas dentro de uma casa, espremida entre outras, num espaço onde mal caberiam três. O que fazer?
O terceiro burgomestre, que por acaso era filho do segundo, que por coincidência era filho do primeiro, instituiu uma nova tradição: a cada novo neogalandesinho da quarta geração, os neogalandeses da terceira pediriam aos avós da primeira um bercinho para o bisneto.
O costume estipulava que bisavôs e bisavós deveriam levar o bercinho (de madeira maciça, segundo a tradição) com suas próprias mãos. Depois de uma subida, com esse peso, pelas escadas neogalandesas, seria de se esperar um infarto. Mesmo o neogalandês mais rijo não dispensa o seu cachimbo e sua cota diária de colesterol, provida pelas vaquinhas neogalandesas, que fornecem leite, queijos e carnes, em abundância.
Escapando do infarto, o sobrevivente, com as pernas ainda trêmulas, teria pela frente uma descida. No escuro, como manda a tradição. O resultado mais provável seria uma fratura de bacia ou mesmo um traumatismo craniano. Hospital, ou melhor ainda, necrotério.
Para dar uma mãozinha na seleção natural, reza o costume que, antes da descida, deve-se dar um tapinha gentil nas costas dos velhinhos.
Infelizmente, com o passar das gerações, foi se deteriorando a praticidade neogalandesa, bem como o respeito pela autoridade.
Seguindo o exemplo do primeiro burgomestre, assim que pressentem que vão ser bisavós, os velhinhos tratam de se mudar. Como consequência, a segunda geração desce para o primeiro andar, a terceira para o segundo e a quarta, terá mais tarde o terceiro andar, para morar e constituir família.
Essa degeneração dos costumes afetou seriamente a tradição do bercinho dos bisnetos. Assim é que em toda casa neogalandesa que se preze, moram apenas três gerações, em três andares, com o terceiro gloriosamente inclinado, ostentando uma viga e uma polia, hoje inúteis.
Sim, porque alguém, não com certeza um neogalandês, inventou um sistema pouco prático de rampa inclinada, com trilhos e contrapesos, por onde sobem e descem as mobílias.





quarta-feira, 1 de julho de 2015

Dilma, a personagem

Dona Dilma é um personagem fascinante para um escritor. Recentemente ela declarou que não respeita delatores e que nunca demitiu um ministro com base na imprensa. Faltou com a verdade, em ambas afirmações. 
Segundo um artigo de Luis Maklouf, na Piauí, Dilma foi presa, barbaramente torturada, resistiu o quanto pôde e, finalmente, levou a polícia a um ponto com um companheiro metalúrgico. Ele narra a cena: quando avistou Dilma, perguntou se ela estava bem. Ela fez uma cara desesperada e logo em seguida, os agentes chegaram por todos os lados e o prenderam.
Não dá para esquecer uma cena assim. No entanto, Dilma insiste em afirmar que resistiu e não entregou ninguém. Ela sempre foi evasiva em relação a esse ponto. Agora foi clara, ao se defender das denúncias feitas por um delator da Lava Jato. Não delatou e despreza os delatores.
O metalúrgico, que agora é caminhoneiro, estava na primeira posse de Dilma. Ele não a condena, pelo contrário. No próprio artigo, afirma que ela preservou os quadros de direção e os que tinham maiores contatos e entregou somente ele, que conhecia muito pouco e que não poria em risco maior a organização.
O procedimento exigido dos militantes por organizações como a de Dilma era esse: resistir ao máximo e dar tempo para os companheiros, alertados por sua ausência nos pontos combinados, se colocarem em segurança. Sob essa ótica, o seu comportamento foi exemplar.
Mas... o bom senso indica que Dilma nunca deveria ter se referido à delação de Pessoa da maneira como o fez. Nesses tempos de Google, nenhuma afirmação resiste a uma pesquisa rápida, se não for verdadeira. Com certeza, ela leu o artigo da Piauí. Então, como explicar esse lapso?
Em minha opinião, Dilma conserva sequelas graves da tortura. Ela construiu, para preservar sua sanidade, uma versão, onde ela não delatou (de acordo com o comportamento previsto por sua organização). Pode até ter apagado a cena dela levando a polícia ao ponto marcado.
Nossa memória, reescreve tudo, cada vez que é acionada. Isso acontece com todo mundo, comigo inclusive. É muito comum narrativas diferentes da mesma cena, por dois personagens que estavam lá. Livros de memória registram casos assim o tempo todo. Há um limite, é claro, para essas discrepâncias. Dilma ultrapassou esse limite.
E as demissões de ministros? Isso é história recente, recentíssima. De novo, penso que ela construiu uma versão onde ela resiste a todas as pressões e não cede. Essa parece ser uma tônica no seu comportamento: não escuta ninguém, não decide nada rapidamente e está sempre isolada.
Matéria recente, afirma que seus auxiliares a enganavam o tempo todo sobre os números reais da economia, caso contrário, ela "explodiria". Acho difícil, auxiliares fazerem isso com outro presidente, mesmo sabendo de seu mau gênio. Aparentemente, o primeiro círculo à sua volta já notou essa sua maneira peculiar lidar com a realidade.
Outro traço interessante é que esse primeiro círculo nunca é estável. De Dilma I para Dima II mudou todo o chamado núcleo duro do poder, aqueles com os quais ela mais se reúne. Dilma é cronicamente desconfiada. Um personagem fascinante, para um escritor. Essa Dilma de ficção, que eu criei, tentando aproximá-la de uma Dilma real, mereceria um Gabo, que escreveria "Ninguém conhece a Presidente".