Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A última guerrilheira

Naquela noite, quando foi desamarrada da cama de campanha e levada para trás do refeitório da base, Walkíria estava tranqüila. Esperava por este momento desde o ataque do Natal de 73, quando perdera contato com os companheiros.
Era outubro de 74 e bem longe, em Minas Gerais, sua sobrinha estava nascendo. Ela e a irmã, Valéria, dividiam os mesmos gostos musicais e o mesmo acordeão, que tocavam juntas, em escalas diferentes. A música veio cedo para Walkíria. Sentada no colo de Rita, sua avó paterna, a menina de dez anos ia dedilhando as cordas que a outra selecionava com a mão esquerda (o lado direito estava paralisado por um derrame).
O acordeão chegou ao Araguaia depois, percorrendo um trajeto semelhante ao que ela e Idalísio haviam seguido. Foi um dos seus primeiros pedidos à família, em uma carta.   Quem os conheceu, não esquece as serenatas, pelas noites de Belo Horizonte, animadas pelo violão de Idalísio. Eles levaram a música até o silêncio da floresta.
A música traz boas lembranças. Ela revê o barracão da família, no Bairro Floresta, à Rua Cristal. Dia 2 de agosto, dia do seu aniversário. De surpresa, chegam uns trinta amigos. Sílvio, colega de Engenharia de Maurício[1], trouxe um órgão, que atravessou em surdina, o corredor, até o barracão nos fundos. Grande parte dos militantes do PC do B estava ali, misturados a outros amigos. Vandré era um denominador comum.
Lembra do seu jogral, Mensagem a Geraldo Vandré, montado com pedaços de seus versos. Está com a irmã, até hoje:
“Mas, se estoura uma boiada, repete com muita fibra:
Minha gente, meus senhores,
P’ra morrer, morro por mim
E por minha condição.
No estouro de uma boiada
Quem foge não tem perdão”
Não fugiu. Enquanto caminha, lembra do primeiro ano novo passado na mata. Ela e Idalísio organizaram um teatrinho que encantou o Tio Cid. Muito tempo depois, João Amazonas ainda irá lembrar aquela noite enluarada. O ano, que começou tão bem, trouxe a morte de Tidá[2].
Escuta a sua voz cantando a música de Marcos Valle:
A mão que toca um violão/Se for preciso faz a guerra,/Mata o mundo, fere a terra./A voz que canta uma canção/Se for preciso, canta um hino,/Louva à morte./Viola em noite enluarada/No sertão é como espada,/Esperança de vingança...”
Sabe que Idá morreu como herói. A repressão no Araguaia cuspia balas de metralhadora. Bem diferente daquela metáfora dos tempos de professora, no Bairro Gorduras de Cima. Seus meninos queriam tomar o picolé que era vendido no bar do outro lado da rua. A diretora proibia.
“- Vocês acham que é errado comprar picolé?
- Nããããããooooo!
- Pois é. Nós temos que fazer aquilo que não é errado, então nós vamos comprar picolé.
- Mas a diretora não deixa!
- Mas vocês estão falando que não é errado! Então eu vou vigiar vocês para a diretora não ver.
Na volta...
- Vocês sabem o que a diretora está fazendo? Sabe como é o nome disso? Isso é repressão!”[3]
            De novo, a voz de Tidá vai entoando os versos:
“Quem tem de noite a companheira/Sabe que a paz é passageira,/Prá defendê-la se levanta/E grita: Eu vou!/Mão, violão, canção e espada/E viola enluarada/Pelo campo e cidade,/Porta bandeira, capoeira/Desfilando vão cantando/Liberdade”
Um banho, um prato de comida, roupa limpa, pelo menos vou morrer como uma combatente - pensa. A despedida com a irmã passa rapidamente. Janeiro de 71. Valéria cobriu um ponto com o Idá, na esquina de Amazonas com Tupinambás. Era central e bem perto da Rodoviária. Ela chegou depois, num táxi.
“- Minha maior alegria vai ser ver você do nosso lado. Agora vai para casa que papai e mamãe estão precisando de você. E não chore na frente deles.”[4]
- Não vou chorar na frente deles.
Vera[5] leva o primeiro tiro no pescoço.
- Idiota, ah se eu tivesse uma arma como esta! Ainda dá para ouvir o refrão, que o segundo disparo vai interromper:
Liberdade, liberdade, liberdade.
O corpo de Walkíria não foi encontrado. Ele está presente simbolicamente, na UFMG, onde a escultura de quatro troncos cortados representa as vidas ceifadas pela ditadura. Correspondem a quatro ex-alunos: ela, Idalísio, José Carlos da Matta Machado e Gildo Macedo Lacerda. O Diretório Acadêmico da Faculdade de Artes e Educação da UFMG tem o seu nome. Ele também foi dado pelo projeto Rua Viva à antiga Rua G, no Bairro Braúnas,em Belo Horizonte. Com o dinheiro recebido do Ministério da Justiça, como indenização, a família comprou dois lotes nesta rua.
Sua irmã sente até hoje sua presença:
“Como nunca antes,
Você hoje veio aqui.
Igual à lua redonda
Que se achava escondida
E se desponta na noite
Você hoje veio aqui.

Você veio.
Marcou presença
Levantou lembranças.
Você sempre forte foi.

Amou, sonhou, sofreu.
E se desfez e se foi.
E hoje você volta inteira
Para os louros colher.
(...)
Vem cá, fica com a gente.
Encoste aqui.
Tenho tanto para lhe contar...
Mostre-me suas feridas!
Que eu lhe mostrarei as minhas.
Tínhamos sempre tanto para conversar, lembra-se?
Confidências, risos, choros...
Tudo ombro a ombro.
Nossa! Quanto tempo!
Você sumiu!
Ah! Que saudade!

Abrace-me!
Abrace meus filhos!
Viu só como estão grandes?
Papai e mamãe não puderam esperar você aqui.
Já se foram...
Vocês se encontraram lá fora, não é?

Mas veja! Quantos amigos!
BH, RJ, SP, o país inteiro.
Todos sentem a sua falta
E admiram a sua coragem.

Que bom que você veio aqui.
Fica com a gente.
Assim, no silêncio.
Não diga nada.
Apenas escute o sax tocando Viola Enluarada.
Descanse sua cabeça no ombro meu.
Assim, quietinha, quietinha...
A viagem foi longa.
Durma... durma...
Ah! Abra os olhos só um pouquinho:
- Obrigada pela visita, viu?
Eu amo você”.[6]



[1] Na primeira reunião que fiz, como militante do Partido, Walk escolheu o meu codinome. Passou a usá-lo sempre, mesmo fora das reuniões.
[2] Idá e Tidá eram os apelidos carinhosos de Idalísio, no círculo mais íntimo de amigos e familiares.
[3] Guerrilheiras do Araguaia, p. 18
[4] Guerrilheiras do Araguaia, p. 190
[5] Codinome que Walquíria usava, no Comitê Estudantil do PC do B em Minas. Eu havia sugerido Verônica, que ela abreviou para Vera.
[6] Guerrilheiras do Araguaia, p. 268 e 269. Poesia escrita por Valéria, no dia 02 de abril de 2004.

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