Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Capítulo 1 - parte 2

Rumo ao Araguaia

Em junho de 66, quando o PC do B realizou a sua 6ª Conferência, Elio estava presente, como delegado do Espírito Santo. Como o partido reivindicava ser uma continuação do antigo PCB, a numeração de suas conferências foi mantida, bem como o nome do jornal do Comitê Central, A Classe Operária.

De 62 até 66, o Partidão havia sofrido uma série de rachas e de cisões, perdera muito da sua influência e se desmoralizara politicamente com a derrubada do governo João Goulart. Os olhares da maioria dos revolucionários brasileiros se voltavam para Cuba, onde uma revolução armada derrubara a ditadura de Fulgêncio Batista.

A Sexta Conferência aprovou um documento intitulado “União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista”, onde propunha a formação de um governo democrático, representativo de todas as forças patrióticas, como forma de aglutinar as forças que se opunham ao regime.

Tarzan de Castro havia sido colega de turma de Elio, em 65. Em entrevista ao Jornal Opção, Tarzan afirmou que guardava uma grata recordação dessa viagem: “Peguei na mão de Mao, num encontro no Palácio do Povo, em Pequim. Passamos uma tarde com ele, com o primeiro ministro Chu-En-Lai, toda a cúpula. Falamos sobre Brasil, América Latina, cultura. Foi um encontro muito agradável e proveitoso”.

Alegando que a proposta de um governo democrático era um recuo em relação ao governo popular revolucionário que constava no Manifesto Programa, Tarzan de Castro encabeçou o grupo de militantes que criou a Ala Vermelha do PC do B, mais conhecida como Ala Vermelha. A Ala criticava a inação do PC do B e cobrava o início imediato da luta armada.

A crítica à inação é improcedente, pois já estavam sendo dados os passos que levariam ao Araguaia. Embora a formulação teórica da luta armada não estivesse acabada, a VI Conferência assinalava que “a luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular”. Segundo depoimento de Elio, os militantes estavam conscientes de que a luta armada era inevitável e a ela se referiam como sendo “a quinta tarefa”.

Em 66, começam a chegar os primeiros militantes à área da futura guerrilha do Araguaia. Na verdade, o trabalho no campo é bem anterior. “A partir de 1964, pessoas e recursos começam a ser deslocados para o campo. O dirigente Maurício Grabois e o economista Paulo Rodrigues, militante comunista desde 1960, estão entre esses quadros... No intuito de localizar uma zona adequada ao propósito do Partido, os dois homens vão percorrendo parte do país de sul a norte.”[in Maia, Iano Flávio et alli, p. 39].

A área procurada deveria ter condições geográficas favoráveis à guerrilha e desfavoráveis às tropas regulares e uma população com bom potencial de luta. Nessa pesquisa os dois chegaram até Porto Franco, no Maranhão, de onde seguiram para o sul do Pará.

“Paralelamente, Pedro Pomar e Carlos Danielli também realizam expedições. Danielli... viaja pelo Nordeste. Mais especificamente pelo Ceará, Piauí, Maranhão e oeste da Bahia.... Pomar se desloca através de Goiás, Maranhão e sul do Pará, disfarçado de vendedor de remédios... Depois dessas viagens de reconhecimento, ele e Ângelo Arroyo ficam responsáveis por preparar a instalação de militantes em Goiás.” [in Maia, Iano Flávio et alli, p. 39]

“Pomar e Arroyo instalam militantes como fazendeiros, posseiros ou comerciantes em pequenas cidades de Goiás. Mas a região apresenta alguns pontos negativos. A população que seria a base de massa da guerrilha, é muito dispersa e tende a se movimentar acompanhando a mudança da fronteira agropecuária.” Grifos nossos.[idem]

Em 65, Vitória Grabois, filha de Maurício Grabois, seu marido, Gilberto Maria Olímpio, Osvaldão e Paulo Rodrigues se instalam em Guiratinga no Mato Grosso. Em depoimento dado à Deusa Maria de Souza, Vitória dá mais detalhes:

“Sobre esse episódio que eu saiba não há nada escrito, nem o PC do B fala algo. No início dos estudos para viabilizar a Guerrilha era necessário escolher uma região adequada para iniciar o movimento. Gilberto, Paulo, Osvaldão e eu fomos para o oeste de Mato Grosso. Gilberto e eu alugamos uma casa na cidade de Guiratinga. Paulo tinha um jeep e era “sócio” do Gilberto em um negócio de venda de roupas; Osvaldão era garimpeiro, na região e eu professora e dona de casa. Minha tarefa era o apoio logístico e também angariar o apoio das populações; a de Gilberto e Paulo era de reconhecimento de toda a região oeste de Mato Grosso; a de Osvaldão, inserção com as massas.
Foi um momento muito rico em minha vida. Ano de 1965, eu estava com 21 anos, recém casada e dona do meu próprio espaço.
Trabalhei com a população local como professora e me tornei uma pessoa muito popular. Após 8 meses, o grupo se desfez e voltei para SP e fiquei grávida, não retornando mais à região.”

Analisando o reconhecimento feito, o partido chegara à conclusão de que a área não era adequada. A busca prosseguiu rumo ao norte: centro-oeste e norte de Goiás e sul do Maranhão e Pará.

Ozeas Duarte ingressou no PCB em 1961, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Em 64, logo depois do golpe, se juntou ao PC do B. Em 66, era o delegado do Ceará à VI Conferência. Em correspondência trocada conosco, ele fala de mais três áreas:

“Sei de mais três regiões de trabalho no campo: no Vale do Ribeira, trabalho embrionário conduzido por Pomar, ao que me parece, muito problemático, até mesmo pela localização. Não deu certo. Outro foi na Serra da Ibiapaba, área do bispo D. Fragoso, sujeito de esquerda, que mantinha contato e trabalhava com o partido sem nenhum problema. Quem estava à frente era Vladimir Pomar. Essa área foi abandonada, queimada por uma panfletagem absurda que fizeram por lá. E outra era no sul da Bahia, que mudou para MG e depois para MT. A repressão dava em cima, mas como era um movimento de massa um pouco mais amplo, o pessoal botava o povo dentro de ônibus, formava a caravana e se mudava, posseiros em novas terras devolutas. Dessa área saiu um torneiro mecânico que foi para o Araguaia. Virou armeiro, arrumador de armas que não tinha como arrumar.”

Em outubro de 67, Che é assassinado na Bolívia. No Brasil e no mundo, 1968 é marcado por manifestações estudantis e greves operárias. Aqui, a partir de 69, o aumento da repressão e a impossibilidade de se repetirem as grandes passeatas, levou várias organizações revolucionárias a optarem por ações armadas nas cidades. Eram inspiradas pela teoria do foco , uma generalização apressada da experiência cubana. (O foco era o embrião da guerrilha. Deveria se localizar no campo e era formado por um pequeno número de militantes oriundos das cidades).

Esse diálogo entre José Dirceu e Wladimir Palmeira, que em 68 eram duas lideranças estudantis de projeção nacional, é esclarecedor:

“Para a linha geral do movimento, na esquerda revolucionária, foi a Revolução Cubana que influenciou decisivamente. Primeiro, pelo mito do Che Guevara que nós tínhamos já antes do maio francês. Che era adorado. O curioso é que a esquerda brasileira nunca repetiu o que houve em Cuba. Ela dizia “vamos assaltar bancos para financiar o foco”, mas como nunca acumulou dinheiro suficiente, assaltar bancos virou ação. Fazia propaganda armada, mas nunca se chegou sequer a ser como um foco cubano, embora a motivação original de se pegar em armas fosse montada nessa concepção. Geraríamos o foco guerrilheiro e as massas adeririam, uma concepção que está em A Revolução na revolução, o livro do Régis Debray.

Zé Dirceu: O foco foi concebido pela ALN e pelo Carlos Marighella. Depois a ALN e o Molipo tentaram implantá-lo em Goiás, em algumas regiões, mandando pessoas para lá. Evoluiria para uma coluna guerrilheira, que no fundo é um foco. Mas nunca foi além de levar armas, comprar propriedade e levar umas cinco ou seis pessoas. Nunca passou disso.

Vladimir Palmeira: É tudo uma baboseira, sabe por quê? Porque o Régis Debray não conhece nada de Cuba.

Zé Dirceu: Nem da América Latina.[in Blog do Zé Dirceu].

Em 68, o PC do B publicou o documento “Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina”. O documento critica as concepções que negavam o aspecto nacional e democrático da revolução, condena a posição reformista do PCB e, indiretamente, a posição dúbia de Cuba, frente ao chamado revisionismo soviético. Há uma frase, atribuída a Fidel, que ilustra com muita felicidade esse posicionamento: “meu coração está com a China, mas meu estômago está com a União Soviética.” Entretanto, a formulação da guerra popular, junto com uma avaliação crítica de outros caminhos para a luta armada, só será feita em 69.

Em Havana, o Museu da Revolução, antiga sede do governo de Batista, ainda guarda as marcas de bala em suas escadarias. Na área do museu, pode-se ver o Gramma, que mais se pode chamar de barquinho, do que de iate. É inacreditável que 80 homens pudessem caber nele. No segundo andar, vendo os mapas e as maquetes militares, deparamos com algo mais inacreditável ainda: em apenas dois anos, os 12 sobreviventes do desembarque conseguiram derrubar o ditador Fulgêncio Batista!

Não cabe aqui analisar as causas da vitória da revolução cubana, mas, certamente, entre os fatores decisivos estavam: a existência de um amplo movimento de massas nas cidades; o isolamento de Batista, cuja ditadura foi uma das mais sangrentas dessa parte do mundo e um movimento camponês com tradição de luta. Não foi o exemplo heróico de um punhado de guerrilheiros que colocou toda essa massa em ação; ao contrário, foi a existência desse enorme potencial revolucionário que assegurou o êxito da luta armada.

De novo, recorremos à opinião de Wladimir Palmeira:
Vladimir Palmeira: No dia em que Fidel iria desembarcar, naquela aventura, havia uma insurreição popular com cinco mil militantes, na segunda cidade mais importante de Cuba, Santiago. Transposta para o Brasil, equivaleria a uma insurreição no Rio. Só que o barco do Fidel atrasou dois ou três dias. A insurreição foi derrubada nesse período, e ao desembarcar Fidel estava vendido. Mesmo assim, ele tinha contato no campo. Não foi chegar e botar os caras sem nenhum contato. São essas são bobagens que Debray exacerbou. Existia em Cuba uma tradição de guerrilha rural, desde que o país ficou independente. Debray fez um manual que descaracterizava a história da Revolução Cubana. Nem a revolução foi como ele disse – que tinha uma certa dose de aventura. Fidel era um cara excessivamente voluntarioso, mas contava com uma base política e de apoio enormes. Não tinha nada a ver com aquilo que tentamos fazer aqui. Imagina, você chegar numa cidade como o Rio e fazer uma insurreição por três dias. O livro do Debray prejudicou muito. A questão da luta armada devia ser tratada de forma mais séria.” [ in Blog do Zé Dirceu]

Nenhum dos quadros iniciais da guerrilha cubana tinha uma formação política mais sólida. O próprio Che tinha apenas tinturas de marxismo. Não é de se estranhar, que essa rica experiência ficasse reduzida a uma fórmula mágica, a teoria do foco.

O documento do PC do B, de janeiro de 69, “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil”, faz um resumo bem apropriado dessa teoria. “Esta teoria não tem em conta a situação objetiva, as forças de classe em presença e o processo político em curso. É uma concepção voluntarista. Segundo os teóricos do “foco”, a guerrilha se desenvolve harmonicamente, “a partir de um núcleo central único”, situado em regiões pouco acessíveis e com combatentes provindos das cidades. Esse núcleo cresce até se transformar numa coluna-mestra que, ao atingir 120 a 150 homens, dá origem a outra coluna que, por sua vez, origina mais outra e assim por diante. Sua existência e manutenção dependem fundamentalmente dos centros urbanos. Seu método não tem em vista ganhar as massas para que elas mesmas façam a sua guerra. O “foco”, segundo seus defensores, por si só, através de atos heróicos de pequenos grupos, atrai novos combatentes e conduz a revolução à vitória. A guerrilha é o próprio partido.”

Em contraste, vejamos o resumo dos aspectos básicos da guerra popular, segundo o PC do B: “... será uma guerra de cunho popular, travar-se-á fundamentalmente no interior e mobilizará as grandes massas camponesas, será prolongada, deverá apoiar-se em recursos do próprio país, empregará o método da guerrilha em grande escala, forjará o exército popular, estabelecerá bases de apoio no campo. Terá que se orientar, durante muito tempo, pelos princípios da defensiva estratégica e deverá guiar-se por uma política correta.”

Em dezembro de 69, o PC do B lançou o documento “Responder ao banditismo da ditadura com o avanço da luta do povo”. Internamente, ele se tornou conhecido como o documento da “revolucionarização”. Considerando o agravamento da repressão e sabendo que em breve o partido poderia iniciar ações armadas no campo, a direção procurava preparar os quadros e os militantes para a nova situação.

“Impõe-se a revolucionarização cada vez maior do Partido. Seus dirigentes e militantes precisam dedicar-se integralmente à tarefa de aplicar a orientação partidária. Cada comunista tem que organizar sua vida de maneira a consagrar o máximo de seu tempo ao Partido, transformar-se num autêntico soldado da causa do povo, pronto a executar qualquer atividade e onde quer que seja. Tem que evitar tudo que possa prejudicar sua militância revolucionária. Deve estar preparado, moral e ideologicamente para arrostar todas as dificuldades e enfrentar todos os sacrifícios. Para ser um autêntico servidor do povo tem de subordinar sua vida e atividade às necessidades do Partido e da revolução, estar sempre pronto a realizar o trabalho mais difícil que a luta revolucionária exige.” Grifos nossos.

A partir de 1970, se acelera o envio de militantes para a região do Araguaia. Eram muitos os que se ofereciam como voluntários para ir para o campo, onde era esperado que fosse se travar a luta armada. Por outro lado, o partido era cobrado tanto internamente, pelos seus militantes, quanto externamente, pelos militantes das organizações que já haviam iniciado as ações armadas, pela demora em dar uma resposta efetiva ao endurecimento do regime militar.

Ao final desse livro, pretendemos fazer uma ampla avaliação da política do PC do B em relação ao Araguaia, entretanto, fazem-se necessários dois reparos iniciais. Primeiro: é preciso examinar com muito critério a afirmação de alguns sobreviventes da guerrilha de que não tinham noção do tipo de trabalho que encontrariam no Araguaia. Embora a localização da futura guerrilha não fosse conhecida até por parte do Comitê Central, o sentimento geral no partido era de que em breve seriam desencadeadas ações armadas no campo. O autor se lembra bem de que, em Porto Alegre, um militante havia “dado um prazo” para que a guerra popular começasse, sob pena de ele não acreditar que o partido estivesse falando sério. Isso foi um pouco antes do começo da guerrilha.

Segundo: é falso dizer que o PC do B estivesse abandonando o trabalho legal e as entidades de massas, legais ou clandestinas. Essa era a visão das organizações foquistas, que recrutavam a grande maioria dos seus militantes entre os estudantes. Como não era mais possível repetir as passeatas de 68, elas teorizavam que o papel do movimento estudantil era o de fornecer quadros para a revolução. Mesmo a atuação nas entidades legais, estreitamente vigiadas, poderia “queimar” os militantes. Preferiam organizar círculos de leitura e de estudos entre a chamada vanguarda.

O caso da UNE é emblemático. Embora tivessem um grande peso no movimento estudantil em 68 e 69, essas organizações abandonaram a entidade e, na diretoria eleita no XXXI congresso, realizado em 71, só havia militantes do PC do B e da AP , que já eram majoritários nas entidades legais (a AP estava cindida em duas grandes correntes). A AP era uma organização revolucionária, originada da esquerda católica, que evoluiu até o maoísmo. Teve grande influência nos movimentos populares da década de 60. Betinho, o irmão do Henfil, foi um dos seus fundadores.

Em linhas gerais, essa foi a trajetória política do PC do B da ruptura até o Araguaia: desligou-se do PCB em 62, em virtude de sua política reformista; optou desde o início pela luta armada; alinhou-se ao lado da China na cisão do movimento comunista internacional; iniciou desde 64 a preparação do trabalho do campo e a escolha de uma área com potencial para futuros conflitos armados; definiu, em 66, na VI Conferência, uma plataforma política capaz de unir as grandes massas do país no quadro de uma revolução nacional e democrática; delineou, em 69, o que seriam os princípios básicos da guerra popular e, a partir desse ano, intensificou a remessa de militantes e a preparação ideológica do partido para os futuros confrontos. Ao mesmo tempo, manteve a sua atuação nas cidades, nas entidades de massas, legais ou não.

domingo, 25 de outubro de 2009

Entrevista com Criméia

Sábado, dia 24, eu entrevistei Criméia, uma das sobreviventes da guerrilha do Araguaia. Pena que o tempo foi curto. Ela corrigiu muitas informações errôneas que eu havia colhido em outras fontes e mostrou uma face rara hoje em dia: a de um combatente que não depõe suas armas e nem concilia com o poder.
Depois que ela revisar o texto da entrevista, vou colocá-lo nesse blog.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Capítulo 1 Primeira Parte

Capítulo 1 – O PC do B: da ruptura ao Araguaia


A ruptura

Em 1949, quando o grupo de alpinismo de Elza Monnerat escalou o morro Dois Irmãos para pichar o nome de Stalin no paredão, com letras de vários metros de altura, eles pintaram à cal a sigla do partido responsável - PCB. Essa era a sigla do Partido Comunista do Brasil, desde a sua fundação em 1922. Durante pelo menos quarenta anos, o Partidão, como era conhecido, foi a maior força de esquerda do Brasil. Pode-se dizer que sua liderança nunca esteve seriamente ameaçada – as organizações trotskistas, anarquistas e socialistas que surgiram nesse período duraram pouco tempo e nunca conseguiram criar bases sólidas entre os movimentos de massa.

Em 1962, Elza Monnerat não conseguia mais reconhecer o partido em que ela ingressara, em 18 de abril de 1945: o estatuto fora mudado para facilitar a sua legalização e se adequar às exigências eleitorais e o próprio nome havia sido modificado para Partido Comunista Brasileiro. Vendo o seu partido tão desfigurado, ela não teve dúvidas em se juntar a um pequeno grupo de militantes e de dirigentes inconformados.

Eles refundaram o partido, mantendo a denominação original e, para se diferenciar do Partidão, lançaram uma nova sigla: o PC do B. A pichação que Elza fizera anos antes ainda era visível para milhares de cariocas, embora a cal, sob a ação do tempo, houvesse desbotado um pouco.

Ao fazer sua opção, Elza sabia muito bem que o “do” acrescentado envolvia muito mais do que uma simples discordância tática. Se tivesse que apontar o momento em que divergências começaram a se cristalizar, ela escolheria uma data: janeiro de 1956. Foi nesse mês que Khruschev leu o seu famoso relatório secreto para uma platéia perplexa, durante o XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética).

Khruschev era o sucessor de Stalin e as acusações que fez contra o seu antecessor eram gravíssimas. Ele afirmou, por exemplo, que 70% dos membros e suplentes do Comitê Central eleitos no XVII Congresso foram presos e fuzilados injustamente. Dos 1.966 delegados desse mesmo congresso, que, ironicamente, é conhecido como o Congresso dos vitoriosos, 1.108 foram presos sob a acusação de crimes anti-revolucionários.

As denúncias caíram como uma ogiva nuclear sobre os comunistas brasileiros. Assim que o Comitê Central se reuniu para tratar do Relatório Khruschev “... houve de tudo: Arruda Câmara, Carlos Marighela e outros chegaram a chorar convulsivamente durante dias... Prestes chegou a afirmar que, ao saber da veracidade das notícias, pensara em se suicidar, por ter fracassado como comandante.” Muitos militantes evitavam olhar para o morro Dois Irmãos, onde o nome de Stalin resistia ao tempo.

Segundo Khruschev, aquelas práticas encontraram um terreno propício devido ao “culto da personalidade” e ao abandono da direção colegiada. Na prática, as decisões mais importantes do partido soviético eram tomadas por Stalin, seu secretário-geral, o guia genial e infalível, que só compartilhava suas opiniões com um pequeno círculo de dirigentes.

No Brasil, há muito, o PCB vinha adotando métodos similares de direção. Moisés Vinhas cita de memória uma afirmação de Diógenes de Arruda Câmara, dizendo que “não mudaria uma vírgula do projeto de programa do IV Congresso do PCB, pois ele havia sido visto por Stálin”.

Portanto, não é de se estranhar que, mal começado o debate, chovessem críticas dos militantes ao chamado “mandonismo” dos dirigentes locais: Prestes, Marighella, Amazonas e, em especial, Arruda. Com o aprofundamento das discussões, surgiu um grupo, liderado por Agildo Barata e Astrojildo Pereira, que começou a se perguntar se valeria mesmo a pena manter um partido desse tipo. Foram chamados de liqüidacionistas, Agildo foi expulso e a discussão abortada. O partido acabou cerrando fileiras em torno de Luis Carlos Prestes, o seu secretário geral.

Logo, não foram as denúncias contra Stalin que dividiram o partido, pelo menos nesse primeiro momento. O XX Congresso foi marcante sob vários outros aspectos: ao aprovar os princípios da “coexistência pacífica” e da “transição pacífica”, ele sinalizou uma guinada brusca nos rumos do movimento comunista internacional.

Segundo Khruschev, o bloco socialista ocupava “25% da superfície do globo, com uma população superior a 35% do total mundial e suas indústrias contribuem com cerca de 30% da produção industrial do mundo.” Ele concluiu que, se os sistemas capitalistas e socialistas pudessem conviver pacificamente, o socialismo iria se impor gradualmente. Devido ao peso crescente do bloco socialista, “Os povos dos países coloniais e dependentes podem hoje alcançar sua completa independência econômica mediante a conquista ou a consolidação da liberdade política e a realização de uma política externa independente e de acordo com os reais interesses nacionais.” Em outras palavras, a revolução armada não era mais necessária e nem desejável.

Foi exatamente em torno dessas teses que se manifestaram divergências de fundo, que acabariam levando à cisão. Podemos dizer que a luta se travou entre as teses revolucionárias e as teses reformistas.

O partido de Elza Monnerat era o partido que conduzira a insurreição de 1935. Dessa fracassada tentativa de tomar o poder, surgiram os heróis e os mártires retratados na trilogia de Jorge Amado, “Os subterrâneos da Liberdade”. Lá estão Prestes, Olga e muitos outros dirigentes. Eles são citados pelos seus nomes verdadeiros ou por pseudônimos, que mal encobrem a sua verdadeira identidade (Apolônio de Carvalho, por exemplo, é Apolinário).

Unidos num determinado momento sob a mesma bandeira, ao longo da década de 60, os personagens de Jorge Amado tomariam rumos completamente divergentes. Também no plano internacional, a família comunista começaria se dividir: os chamados “partidos irmãos” passaram a se acusar mutuamente de contra-revolucionários.

No final dos anos 60, os militantes de esquerda tinham o hábito de escutarem as rádios estrangeiras: a Rádio Moscou, a Rádio Havana e a Rádio Pequim. O autor se lembra muito bem das transmissões em ondas curtas, que começavam com a introdução: “Camaradas e amigos, aqui, Rádio Pequim...” No auge da Revolução Cultural, os chineses sempre se referiam à direção soviética como “a renegada-camarilha-revisionista-soviética-de-Breschnev-e-Kossyguin”, tudo isso dito num só fôlego. O adjetivo revisionista indicava que as teses de Khruschev eram um abandono da ortodoxia leninista.

A China, desde 1956, vinha discordando das posições soviéticas sobre Stalin, a coexistência pacífica e a transição pacífica. Em 1960, uma conferência de 81 partidos comunistas, convocada para acertar essas diferenças, terminou com um compromisso entre as duas posições. Em 1969, a dissensão chegou ao seu auge, a ponto de ocorrerem choques armados na fronteira sino-soviética. Em 1962, quando surgiu o PC do B, embora as diferenças fossem marcantes, ainda não se concretizara a cisão do movimento comunista.

O Manifesto Programa do PC do B, que oficializou a ruptura com o PCB, não avançou muito nesse terreno movediço. Ele afirmava sobre as duas potências que “a União Soviética marcha para o comunismo e a China Popular, até há pouco escravizada, forja uma nova sociedade e constitui hoje, um poderoso baluarte da luta contra o imperialismo.” Grifos nossos.

Assim que se separou do Partidão, o PC do B tratou de estabelecer contatos com os principais partidos comunistas. Procurou a União Soviética, Cuba e China. Lincoln Oest era um dirigente histórico, que vivera os momentos difíceis em que o partido, reduzido a um punhado de militantes, era perseguido pela polícia de Getúlio Vargas. Ele participou ativamente desse processo.

Anos mais tarde, no início da década de 70, vivendo sob outra ditadura, ele organizou uma reunião com os estudantes do PC do B que atuavam na diretoria da UNE. O objetivo era passar para os novos militantes um pouco da história do partido. A reunião foi feita num sítio em Jacarepaguá e contou com a ajuda de Carlos Danielli e Luiz Guilhardini. As explanações do camarada Lauro sobre a história do PC do B eram recheadas de relatos envolvendo figuras históricas, o que as tornava muito vivas. Ele nos contou que Fidel Castro recebeu a delegação brasileira em segredo, de madrugada, para não contrariar os soviéticos. Oest acrescentou que a primeira edição brasileira de Guerra de Guerrilhas, do Che, foi patrocinada pelo PC do B. A idéia era mostrar a justeza da luta armada, sem se comprometer com a forma que ela deveria assumir.

Muito cedo, o recém criado partido teve que tomar posição na polêmica que opunha China e União Soviética. Em 1963, no documento “Resposta a Khruschev”, defendendo-se da acusação de divisionismo, o PC do B afirmava que “... as classes dominantes tornam inviável o caminho pacífico da revolução e, por isso, o povo, sem deixar de utilizar todas as formas de lutas legais, deve se preparar para a solução não pacífica.”

Como conseqüência desse posicionamento, em 1964, antes do golpe, foi enviada uma delegação do PC do B à China, para realizar um curso na Academia Militar de Nanquim. O curso durou 10 meses e teve 9 integrantes: Paulo Mendes Rodrigues; Osvaldo Orlando da Costa; Daniel Callado; Dynéas Aguiar, Diniz Cabral, um militante de sobrenome Barbosa, um de sobrenome Gomes, um de prenome Senhorzinho e Paulo Roberto Martins. Oito anos mais tarde, os três primeiros teriam a oportunidade de colocar em prática os ensinamentos recebidos.

Em 65, foi enviada uma segunda turma, composta por: José Humberto Bronca, Manoel José Nurchis, Miguel Pereira dos Santos, Elio Cabral de Souza, Amaro Luis de Carvalho, Tarzan de Castro, Gerson Alves Pereira, Ari Holguin da Silva e Elio Ramires Garcia.

Pelo depoimento de Elio Ramires Garcia, podemos ter uma idéia de como foram os cursos. Elio entrou para o PCB em 1960, no Espírito Santo. Em 62, ficou com o PC do B. Três anos mais tarde, indicado por Danielli, partiu para a China. Ele e Gérson Alves Parreira saíram do Rio de Janeiro em maio de 65. Em Zurique se encontraram com Ari Holguin e de lá seguiram para Berna, de trem. Ari era o chefe do grupo e providenciou os vistos de entrada na embaixada da República Popular da China. Depois de alguma demora, seguiram de trem até Genebra, de onde, em 12 de junho, foram para Karachi, no então Paquistão Ocidental. No dia seguinte, voaram até Xangai, com escala em Dacca (no então Paquistão Oriental). Finalmente fizeram a conexão com Pequim, aonde chegaram no dia 13, à tarde.

A primeira parte do curso foi em Pequim. A rotina era:

- 7:00: café;

- 8:00 até as 11:00: estudo individual ou conferência de algum especialista. Os temas abrangiam filosofia, o partido, a frente única, a formação de quadros, a atuação na clandestinidade, etc. Ao final de cada tema havia um debate em grupo;

- à tarde: a mesma programação. O material de consulta era constituído exclusivamente por textos de Mao;

- 18:00 até as 19:00: atividades físicas (ginástica, tai-chi-chuan, uma pelada, etc.);

- à noite: atividades esportivas, como ping-pong ou futebol, ou culturais: passeios pelos parques, teatro, a Ópera de Pequim (insuportável para os ouvidos de Elio), cinema, etc.

Em Pequim só se estudaram os textos políticos. Os militares, que não deixavam de serem políticos, ficaram para a Academia Militar em Nanquim. Lá a ênfase continuou nos aspectos teóricos. A base eram quatro textos de Mão: “Problemas da guerra e da estratégia”, “Sobre a guerra prolongada”, “Problemas estratégicos da guerra revolucionária na China” e “Problemas estratégicos da guerra de guerrilhas antijaponesa”.

A par desses, havia outros textos de Mao, onde se procurava mostrar que o exército popular era um exército de novo tipo, diferente dos bandos de saqueadores e assassinos comandados pelos “senhores da guerra”, tradicionais na história da China. Poderíamos chamá-los de texto político-militares.

Esse novo exército se identificava com as massas e seus corpos eram unidades de produção e de combate - sua manutenção não poderia ser pesada para os camponeses. Os textos básicos eram: “Nova proclamação das três grandes regras de disciplina e das oito recomendações”, “A luta nas montanhas Ching-kang”, “Fazer do exército um corpo de trabalho”, “Sobre a produção pelo próprio exército dos bens que necessite”, e “A guerra popular” (inserida no texto “Sobre o Governo de Coalizão”).

Sobre o curso em Nanquim, podemos dizer que tinha o formato de um curso de estado maior. Elio se recorda dos imensos mapas militares, cheios de setas azuis e vermelhas, onde os veteranos da guerra antijaponesa e da guerra de libertação mostravam as campanhas. Poucos foram os exercícios de tiro, de simulação de emboscadas ou de combate.

A estadia na China durou quase sete meses: dois meses e meio em Pequim, três meses em Nanquim e um mês de giro pela China. A delegação esteve em Cantão, Xangai, Hangtchou, Wu-han, Xi-an, onde seriam descobertos os guerreiros de terracota e Nang-chang, entre outras cidades. Em Pequim, conheceu sítios históricos e pitorescos; visitou a Cidade Proibida, fábricas, creches e conjuntos habitacionais. Houve até tempo para assistir algumas “peladas” de futebol no Estádio Olímpico. No dia 30 de dezembro, Elio viajou para Genebra e no começo de janeiro estava de volta ao Brasil.

Em 66, foi enviada a última turma, com aproximadamente 15 militantes. Entre eles: Michéas Gomes de Almeida; João Carlos Haas Sobrinho; Divino Ferreira de Souza; José Barbosa Oliveira, que teria o codinome de Rafael, Benedito de Carvalho (codinome Lutero); Lincoln Cordeiro Oest (membro do Comitê Central); André Grabois; Nelson Lima Piauhy Dourado; João Amazonas (membro do Comitê Central e da Comissão Militar da guerrilha); Maurício Grabois (membro do Comitê Central e da Comissão Militar da guerrilha). Negritamos os nomes dos militantes que foram para o Araguaia. Provavelmente, os membros do Comitê Central não participaram dos cursos, mas, com certeza, debateram a experiência da revolução chinesa com os dirigentes do PCCh (Partido Comunista da China).

sábado, 3 de outubro de 2009

Capa



Prefácio

Prefácio 03.10.09

Houve um tempo em que a atividade política era movida à paixão. Uma parte dessa geração foi destruída, uns tantos sobreviveram e outros tantos se consideram vitoriosos, porque conseguiram abocanhar um pedacinho do poder. Esse livro é o registro de um dos capítulos mais significativos dessa época. Ele conta a história dos derrotados.

O xadrez foi uma das minhas primeiras paixões de adolescente. Para quem não é aficionado, é difícil entender a emoção envolvida em uma simples partida. Para os jogadores, é uma luta sangrenta entre duas vontades, entre dois projetos estratégicos. A expressão “o xadrez político”, para mim, sempre teve um colorido especial. Mais tarde, eu iria unir essas duas paixões.

A política, assim como o xadrez, é uma arte. Encontrar o fio condutor, a linha correta, no meio de uma série de fatores que se entrelaçam e se influenciam mutuamente é o desafio comum às duas atividades. Outro ponto em comum é que a liberdade criadora está limitada por uma série fatores objetivos. No caso do xadrez: o tabuleiro, as peças, as regras que determinam seus movimentos e a própria história anterior, que levou a cada posição em particular. Esse é o lado científico do jogo.

Quando eu freqüentava o Clube de Xadrez de Belo Horizonte, costumava assistir as análises post-mortem, que eram feitas assim que uma partida terminava. Os dois jogadores, com a ajuda de um bando de sapos, analisavam jogada por jogada, procurando estabelecer um veredicto final: a vitória foi justa ou não? Quais eram as alternativas do perdedor?

O que se pretende com esse livro é uma análise post-mortem da Guerrilha do Araguaia. A luta contra os guerrilheiros, episódio obscuro de nossa história recente, durou três anos e envolveu dezenas de milhares de soldados. Para apoiar essas operações, quartéis e estradas foram construídos no meio da selva amazônica. Tudo isso sem que a imensa maioria do povo brasileiro soubesse que, numa região conhecida como o Bico do Papagaio, 70 militantes do Partido Comunista do Brasil, o PC do B, pretendiam criar um novo Vietnã.

Esse livro foi escrito em co-autoria com o meu antigo companheiro de cela no Dops de Belo Horizonte, Elio Ramirez Garcia. A par do rigor científico, da preocupação com a verdade factual, pretendemos enriquecer essa análise expondo os desejos, as expectativas e os pensamentos de um dos lados envolvidos no conflito. Militando no PC do B à época da guerrilha, tivemos a oportunidade de conhecer em primeira mão a história desse partido, de conviver de perto com militantes e dirigentes que estiveram no Araguaia e de vivenciar a cultura dessa organização, se é que podemos usar esse termo.

Inicialmente, pretendemos mostrar que o Araguaia foi a conseqüência lógica da trajetória anterior do PC do B, o coroamento de uma visão estratégica. Entre o final da década de 60 e meados da década de 70, época que abrange a preparação e o desencadeamento da guerrilha, parecia que a revolução poderia derrotar o imperialismo. É a época da libertação das colônias africanas e da derrota americana no Vietnã. No horizonte da crise do petróleo e da estagflação da década de 70, se vislumbrava um colapso do sistema capitalista. Poucos poderiam prever a guinada da China e nada indicava o desmoronamento total do regime soviético e das democracias populares, tal como se deu.

No plano nacional, o PC do B previa que o recrudescimento do fascismo acabaria por isolar o governo, revigorando o movimento de massas. Apostava que o fracasso das políticas de conciliação e a justeza de sua linha ajudariam a transformá-lo num partido forte e numeroso.

No Araguaia, o regime se viu obrigado a mobilizar grandes contingentes militares e a manter completamente isolada uma vasta região. Ele procedeu como se estivesse em território inimigo - conduziu as operações militares sem se preocupar em ganhar corações e mentes, sem poupar nem mesmo a própria Igreja da região. O fim da guerrilha coincide com o fim da ilusão de ganhar a simpatia da classe média e dos formadores de opinião. A retirada estratégica de Golbery entra na ordem do dia.

Ambos seguiam uma lógica interna, respondiam, cada qual a sua maneira, às exigências da situação política nacional e internacional. Embora o resultado seja conhecido, não seria prudente dizer que ele era inevitável, ou mesmo que o seu desfecho era completamente previsível, sem um exame mais detalhado do conflito.

Em nossa análise, respeitaremos as mesmas limitações que um jogador de xadrez observa: não faremos jogadas impossíveis. No nosso caso, não dotaremos os personagens históricos de uma onisciência que eles não poderiam ter.

Uma das nossas dificuldades iniciais foi a de entender a natureza da região. Quais eram as suas características físicas, como viviam os seus habitantes, por que ela foi escolhida pelo partido? Abusando de nossa analogia, queríamos saber como era o tabuleiro. Outra dificuldade, por incrível que possa parecer, já que éramos militantes nesse período, foi a de avaliar a força do PC do B. Quais eram as peças? Segundo os seus dirigentes, era um partido ainda pequeno. Ficamos surpresos ao constatar o que era exatamente um partido pequeno, face à grandeza das tarefas as quais ele se propôs.

Finalmente, procuramos reconstituir lance por lance a partida, a verdade factual. Ao exército, não convém expor os métodos que usou para derrotar a guerrilha. Ao partido, por sua vez, razões internas e de propaganda impedem uma avaliação mais serena. Uma simples reconstrução dos três destacamentos, com todos os seus componentes, exigiu a consulta a várias fontes, muitas vezes divergentes. O relatório Arroyo, nossa fonte primária mais importante, é impreciso em relação a vários fatos e datas. Foi uma tarefa similar à de reconstituir uma partida mal anotada, recorrendo, muito tempo depois, às lembranças dos espectadores.

É preciso considerar que o Araguaia é muito pouco conhecido. Em 1972, fazia mais de 35 anos que a Insurreição de 1935 ocorrera. Hoje, estamos a essa mesma distância do Araguaia. Entretanto, a bibliografia disponível sobre a guerrilha e o próprio espaço que ela ocupa na cabeça dos cidadãos comuns são menores do que os relativos à insurreição.

A análise feita até agora pelo principal protagonista, o PC do B, é precária. A discussão interna foi abortada e o que se tem como posição oficial são documentos de 1976. Os participantes do drama, guerrilheiros sobreviventes e militantes do PC do B da época, se dispersaram pelas mais variadas posições políticas. Nós diríamos até que o PC do B de hoje é muito distinto do partido que fez a guerrilha.

Por último, gostaríamos de ressaltar que a guerrilha do Araguaia, foi, antes de tudo, um confronto militar. E os confrontos militares são decididos pelas armas. O nosso veredicto final deve ser algo do tipo: a guerrilha poderia ter sobrevivido? A posição oficial do PC do B é que sim, se não houvessem acontecido erros militares graves. Nós pretendemos fazer uma análise da concepção que norteou o Araguaia, dos condicionantes que levaram a essa concepção, das alternativas que se ofereciam e, finalmente, voltar à posição inicial, àquele dia 12 de abril de 1972, e responder: o que poderia ter sido feito para levar a um outro desfecho?



Introdução

A idéia é postar capítulo a capítulo o meu livro sobre a Guerrilha do Araguaia. Paralelamente, estarei emitindo minhas opiniões sobre: O Galo, o aumento da entropia universal, os prolegômenos de uma teoria estética, a contribuição de Tigran Petrosian para o xadrez contemporâneo e, por último e menos importante, a atual conjuntura.
Conto com a ajuda dos amigos e da família.